sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

AS LIRAS DE MARÍLIA




LIRA I

Lê, meu amado,
os versos que te escrevo,
a procurar-te em outras terras,
longínquas e amargas.

Levou-te a foice do destino,
que separou-nos antes da colheita,
as núpcias há três anos marcadas
para terminar com teu degredo.

Não, não aceito a distância
que nos impuseram,
eu, abandonada em terra inóspita,
tu, levado pelo carrasco
que nos entrevou.

Bordavas com dedos ágeis
o tecido do meu vestido,
eu, a noiva de um poeta
que não mais retornou.

Foram os diamantes, o ouro,
as liras que me escreveste?

Quem te roubou de mim
foi o negror de nossa cova.
Quem lia teus poemas pensava:
“Quem é Marília bela?”
“Quem é a musa do poeta?”

Pois te digo que a musa
foi morta e enterrada
em vida ao arrancarem
de mim o meu futuro.

13/01/2013 – 18h28





LIRA II

Quem me ouve,
morre em segredo,
porque nada diz,
pois nada foi dito.

Quando falam comigo,
emudeço,
porque nada
sei do ocorrido.

Quem disse, quem soube,
quem há de dizer o porquê,
por que a hora funesta
me coube como enredo?

A quem serve a beleza
senão para sua tumba?
Eu me despi do belo
para não carregá-lo comigo.

Aonde eu ia, seguiam-me os olhos:
“Lá vai ela, lá vai ela!
De nada serviu tanto ouro,
nem tanta beleza”.

Escondi-me do mundo,
não pude mais vê-lo.
Morri um dia de cada vez
e só o amor sustentou-me.

Só o amor poupou-me
de mais desgraça e medo.
Só o amor conduziu-me
à porta da minha vida.

E disse:
“Não temas, Marília,
pois foste marcada
como a mais bela
e a mais amada.

“Um dia, Marília,
sua história será cantada
e sua tristeza recontada.
Não chores, Marília,
pois isso não é nada”.

Meu amado foi levado
pelas águas a além-mar.
Meu amado partiu,
mas sem me deixar.
Deixou comigo seu coração.

Quisera mudar o destino,
porém destino não se muda.
Cabe a nós apenas vivê-lo
como nos é dado.

Sofri toda a amargura,
e padeci um bocado.
Porém, quanto mais sofria,
mais aprendi a amá-lo.

Meu coração
não se arrepende
de um dia
tê-lo amado.

14/01/2013 – 2h50




LIRA III

Quem são os pecadores?
Quais são os pecados
de quem somente amou?

Quem são os acusadores?
Quem são os acusados
de um crime que não se cometeu?

Quem estava de tocaia?
Quem foi o traidor?
Quem era o embuçado?

Que palavras foram ditas
para se derramar a desdita,
e arrancar de mim o meu amor?

Eu só quis minha prenda,
só li meu poema,
só aguardei junto à porta
sua carta florida.

Mas,ao pé do chafariz,
corria a voz do povo:
“Prendei-o!
Prendei o poeta!”

Dirceu era tão nobre,
tão amado noivo,
mas quis a sorte
que ele partisse.

Corri ao pé da rainha,
supliquei ao Príncipe João,
mas nem este me ouviu.

Minhas liras já tinham
corrido o mundo e chegaram
antes de mim aos seus ouvidos.

“É ela, é ela”, diziam,
“a mulher mais bela
e mais amada do Brasil”.

E a vista já turva e o olhar
já perdido me levaram de volta
à casa que me recolheu.

15/01/2013 – 1h25



LIRA IV

Eu, Marília,
era a mais amada,
a mais cortejada
de toda a colônia.

Vinham-me visitar
homens da Corte,
do Brasil e de Portugal,
e houve quem dissesse
que outra mulher
não possuía meus dotes.

Fui, por um tempo,
feliz e venturosa,
a quem todo amor foi dado
nas liras do meu amado.

Três anos se passaram
sem que nada mudasse
e eu só tinha olhos
para meu casamento
no final de maio.

Doze dias antes,
prenderam Dirceu.
E, sem mais palavras,
ele foi levado preso
como um réu comum.

De nada adiantou
sua fidalguia.
De nada adiantou
todo o seu amor.

16/01/2013 – 17h10





LIRA V

Ouvi, amigos, meu desatino.
Dezenove anos eu contava,
quando um homem, respeitado
por todo lugar,
me pediu em casamento.

Ele era poeta e me escrevia
umas liras que todos liam.

A quem eram escritos os poemas?
“A Marília”, ele dizia,
“por seu amor, Dirceu”.

Eu era morena de olhos escuros,
e ficava todo dia à janela,
à espera do meu amado.

Lia seus versos e os guardava,
dobrava as folhas dentro do livro,
aguardando um novo poema.

Ah, amado, quanto esperei por ti
ao pé da janela acimado chafariz!

Ali esperava toda tarde,
até que apontasses no portão.
Minhas tias me diziam:
“Sai daí, menina!
 Não te exponhas tanto.”

Só eu sei, querido,
o que te amar
me custou.

21/01/2013 – 1h48






LIRA VI

Meu nome escreveste
sobre o linho mais puro.
Trançaste meus cabelos negros,
e pintaste meus olhos com palavras,
e tornei-me para sempre bela.

Subia e descia as escadas
da igreja contando os degraus
que me conduziriam ao altar
no dia trinta de maio,
após três anos de noivado.

Qual! Turbaram minha vida,
despiram-me das alvas vestes,
deixaram-me nua em plena Vila Rica,
caçoada por todos, a noiva
de quem haviam usurpado o marido.

Riram e zombaram de mim,
como se eu não fosse mais virgem,
como se o sequestro do meu noivo
me tornasse impura.

Que destino me coube
naqueles idos de 1789!
Por causa da inveja
de Silvério dos Reis,
de seu ciúme desmesurado,
perdi Dirceu,que foi preso
antes que pudesse fugir,
alertado pelo embuçado.

Que desdita!
Que maldito dia!
Tivesse me casado
um ano mais cedo,
nada disso teria sido.
Mas, quem sabe,
Silvério não tivesse
escrito sua carta antes
ao Visconde de Barbacena?

Suposições, suposições...
E as liras chegavam
por sobre o muro,
espalhavam-se pela cidade,
murmuradas de boca em boca:
“É ela, Marília bela,
a noiva do poeta”.

Lia e relia seus poemas
para prendê-lo a mim,
para guardá-lo, enfim,
para que nunca me deixasse
o homem que tanto amei.

Partiu, como um raio,
levado pelo carrasco.
Partiu o belo Dirceu,
de olhos azuis
e louros cabelos.
Partiu até desaparecer
no horizonte.
Partiu e nunca mais o vi.

Fiquei só para viver
a minha história.

21/01/2013 – 23h00






LIRA VII

Vivi como uma dama,
envolta em xales,
e cobrindo o rosto
com um leque.

Depois que meu amado partiu,
fiquei confinada
na Fazenda das Goiabeiras
junto a meu pai.

Enchi meus dias com bordados,
com leituras e orações.
Recorri a Nosso Senhor e à Virgem Maria.
Nada nem ninguém me consolava.

“Santa Maria, Mãe de Deus,
Rogai por todos nós, pecadores,
Assim como na hora de nossa morte.”

Na hora da morte,
todos correram.
Na hora das sentenças,
todos fugiram.
Todos os bens confiscados,
as casas arrasadas,
a terra salgada.

Naquela hora,
morreu Tiradentes.
Naquela hora,
morreram todas
as esperanças inúteis
de um lugar
se tornar mais lindo
do que já fora.

Naquela hora,
fecharam as portas e janelas,
e ninguém mais olhou para fora.
Fecharam-se os homens
e as mulheres dentro de casa,
de vergonha de um dia
terem pensado em ser livres.

Impôs-se a lei do silêncio
para que ninguém mais falasse,
ninguém mais ouvisse dizer
que um dia aqueles homens existiram.
Por isso foram banidos.

E Joaquim José da Silva Xavier
ficou para réu maior,
executado no lugar de todos,
em 1792.

Nesse mesmo ano,
partiu Dirceu, levado pela nau
que o transportaria
para os confins da África,
para Moçambique,
para a ilha onde morreria,
em 1810.

Me disseram que lá
ele se casou.
Eu respondi:
“Só se estivesse alienado.”
E estava.
Que homem não enlouqueceria
após ser levado para longe
de tudo que conhecera?

Seguiu Dirceu,
despojado de tudo que possuíra,
sem seus trajes, arrematados
para pagar as custas
dos autos da devassa.

Que homem não enlouqueceria?

29/01/2013 – 23h00





LIRA VIII

A história da Conjura,
da Inconfidência,
não cessa de passar
em minha cabeça.

Eu, que vi tudo de perto,
sentia-me assustada,
afastada do meu amor,
levado às pressas
para o Rio de Janeiro.
Lá, na Ilha das Cobras,
Dirceu apavorou-se,
e mentiu,
e desdisse tudo
de que o acusavam.

Como, ele dizia,
haveria de se opor à Coroa,
ele que era português?
Não, claro que não.
Ele apenas cuidava
dos seus encargos,
nada que lhe tirasse o sono.
“Apenas a poesia”, dizia ele,
“preenchia meus dias”.

29/01/2013 – 00h15






LIRA IX

A poesia de seus dias
em Vila Rica
a mim se dirigia.
Escrevia suas liras
como se cantasse,
tal a inspiração
que eu lhe supria.

Esperava ele também
pelo dia do casório,
o enxoval pronto,
as arcas fechadas,
para viajar à Bahia.
Lá íamos nós,
marido e mulher,
mudar de ares.

Ele era o ouvidor destas terras,
o juiz de fora, que julgava
as causas breves,
determinava o que fosse sensato.

Nenhum homem se igualava
em beleza e cultura,
um menino nascido no Porto,
crescido no Brasil,
órfão de mãe desde cedo,
que partiu para estudar
em Coimbra.
Vinte anos depois,
regressou
e me conheceu.

Eu era nova, ainda menina.
Quem poderia imaginar
que homem tão culto
visse em mim a sua musa,
e depois a sua noiva?

Primogênita de meus pais,
nasci no dia de São Francisco de Assis,
em 1767, cinquenta anos depois
de surgir a imagem de Aparecida,
e batizada
na Igreja de Nossa Senhora
da Conceição de Antônio Dias,
com um mês de idade.

Cresci à frente de meus irmãos,
com sabedoria e diligência,
e logo surgiu quem iria pedir
minha mão em casamento.

Em 1782, Dirceu chegou
em seu cavalo rajado,
um homem que a sorte
soprara todos os seus dotes.
Ainda solteiro,
quase quarenta anos,
Dirceu assomara ao topo
da magistratura.

E qual não foi sua surpresa
conhecer-me aos quinze anos!

As liras chegavam por cima do muro,
depois corriam a cidade,
e todos queriam ler
sobre o amor do poeta
por sua musa:
“Graças, Marília bela,
graças à minha estrela”.

Nosso amor atravessou a história,
nas liras do meu amado,
com mais livros que vendeu
Camões!

Teve um filho natural,
Antonio Silvério,
que afastou-o da amante,
e logo procurou uma moça
para se casar.

O Solar dos Ferrões
era a casa que me abrigava.
Nela, veio conversar diversas vezes,
quando os homens aqui se reuniam,
e me viu, mas não pôde se aproximar.

Funcionário público
Sem bens nem fortuna,
e a diferença de idade
assustou minhas tias.
Mas tinha talentos
superiores
aos bens materiais. 

Pastora sem rebanho
de seus versos,
meu nome descende
de Amarílis de Virgílio,
que no grego quer dizer Flora,
deusa das flores,
emprestando-me o nome Marília,
variante de Maria,
passando a ser, então,
Marília de Dirceu,
“o único entre os
árcades cuja obra
é a biografia
e vice-versa”.

Lutou meu doce pastor
por sua pastora,
mostrando-me que seu amor
por mim era puro,
usando para me convencer
sua poesia.

Minha beleza era ainda maior
para os teus olhos,
ao me veres ainda menina,
a colher frutos no pomar,
sem fita ou flor.

Nem sonhava que me espiavas
escondido por trás da janela
de tua casa!

Assobiavas para dizer
que estavas por perto
durante o dia.
Que arrepio me percorria
ao ouvir o som
desse canário solitário!

Meu rosto descrevias como pintura,
“os olhos que espalham luz divina”.
A face da cor da neve
– meus olhos eram sóis!
Os lábios de rubi
e os dentes de marfim!

Para colorir-me,
querias as tintas do céu!
E mesmo que me fizesses ciúmes,
sabias que havia amor.

Dirceu não me deixava em paz!

Num domingo,
na missa das nove da matriz,
veste camisa fina
com punhos de renda,
chega atrasado,
e faz uma mesura com o chapéu
ao se sentar na tribuna,
ao que respondo
com um movimento de leque.

Logo descobriram
que as liras de Dirceu
eram para mim,
e trataram de me dissuadir.
Tentaram me afastar dele,
mas ele passou
ame escrever ainda mais,
e todos liam, embevecidos,
a história desse amor
que um dia seria triste.

Ninguém poderia pensar
em cortejar a musa
de tal poeta!

Pediu-me em casamento,
e todos correram
para me consultar.
Mas como o amor
vence todos os entraves,
me perguntaram o que eu queria,
e eu disse sim!

Marcou-se o casamento
para dali a três anos.

Minha família sabia
que o tempo tudo
pode mudar.

Em junho de 1786,
ficamos noivos:
eu já contava
dezenove anos.

31/01/2013 – 1h14



LIRA X

Fiz por ti o que ninguém faria.
Sonhei contigo um sonho de amor.

Só, à noite, me levantava,
e vinha olhar a janela
onde dormias.

Imaginava teus doces cabelos
repousando sobre a fronha de linho.

Imaginei-te homem escorreito,
com aprumo ao ouvir e ao falar,
tão digno em trajes de veludo,
com bordados e rendas nos punhos.

Teu olhar era doce e os lábios, amenos.
Este homem, assim vestido,
era meu amado que sonhava.

11/01/2013 – 3h58






LIRA XI

Em meio às montanhas,
fiz meus bordados desde menina.
Sonhei com dourados, com brincos,
pulseiras e todos os ornados.

Fui feliz, porque era rica,
e vivia na mais bela casa da cidade,
mas nada disso me adiantou
para guardar o meu amor.

27/01/2013 – 15h41






LIRA XII

Corre o dia à volta das figueiras.
Correm os escravos e as mucamas.
Correm o feitor e as cozinheiras.
Correm os homens,
e toda terra se sacode,
levanta o pó, que se assenta
nas estradas, no tropel
dos cavalos ouriçados.

Gritam ordens os soldados,
gritam as gentes desordenadas,
gritam as almas perdidas
entre os túmulos,
para retornar à tumba
ao anoitecer.

Dança o turíbulo na missa.
Tamborilam os dedos no altar.
Movem-se as mãos rezando terços.
Unem-se as palmas em oração.
Abrem-se os livros sobre a mesa,
e os olhos buscam olhares
girando em torno do átrio.

“Santa Maria, Mãe de Deus,
Olhai por nós, pecadores.”

Olhai por todos os homens
que foram levados e não pecaram.
Olhai por aqueles que ficaram.
Olhai por nós, que oramos contritos
diante de Vós, e não pudemos
nos revoltar.

Salve Rainha, Mãe de Deus.
Salve a Rainha de Portugal.
Salve os homens do Brasil
que aqui chegaram, ficaram,
partiram e cruzaram o mar.
Salve nosso destino
que não nos deixou ser livres.

Salve os homens que partiram.
Salve as mulheres que ficaram.

7/02/2013 – 00h15







LIRA XIII

Um dia, rezaram o terço,
uma novena para a Virgem Maria,
para abençoar todos
que nos deixaram,
os mortos e vivos
que partiram de Vila Rica.

Rezávamos, contritas,
as mulheres
por quem passam
todos os fardos,
de cerzir, cozinhar,
parir e esperar.

Os homens partem
e nunca regressam.

O altar guardava os santos,
imóveis como as montanhas,
os lábios se movendo
em contrição:
“Reza, Marília, reza,
para que teu amor perdure
por toda a vida
e ensine os jovens a amar.”

Amor é feito de nuvem,
névoa esgarçada sobre o monte,
os olivais escondidos
na fumaça de onde brotam
todos os fervores.

A vida passa no sopro,
que faz deslizar a nuvem,
e os dias se alongam
além do horizonte.

Vivemos o tropel
das ansiedades:
a vida não é senão
espera.

Reza e espera.
Reza e espera.

E nada vem ou virá
novamente.

Em meados de maio,
levaram meu amado
e tornei-me a noiva
de um traidor.

Quem houvera de dizer
que aquele belo homem
seria preso com outros dez?

Dez réus foram arrastados
ao Rio de Janeiro,
e levados até as barras do tribunal.
Os autos da Devassa para servir
à Derrama.

O Visconde de Barbacena
armara tudo.
Silvério dos Reis, por ciúmes,
entregou os amigos,
e meu amado era, para ele,
o principal suspeito.

Suspeitavam todos de todos.
Quem se juntara a eles?
O que eles queriam?
Mas eles eram frágeis
e balbuciavam as palavras.

Presos em flagrante de quê?
Estavam em casa e não reunidos.
Estavam em sua lida diária
e não conspirando.

Não houve conspiração.
Houve sonho.
O meu amado estava para partir
comigo para a Bahia.
Onde havia lugar
para uma revolução?

Mentiras, mentiras, mentiras.
Todas elas mentiras.

Mentiram para a rainha.
Não havia conspiração.

9/02/2013 – 00h48






LIRA XIV

Meio português, meio brasileiro,
de mãe portuguesa e pai brasileiro,
nasceste em Miragaia,
na cidade do Porto,
cresceste na Bahia,
estudaste Direito em Coimbra.

Agradaste a rainha,vindo a ser
Ouvidor nas Minas Gerais,
um poeta como nenhum outro
– que tuas liras comprovam,
escritas, uma a uma,para mim,
antevendo a ventura de me ter.

Me escolheste para tua noiva
e, depois do pedido celebrado,
beijaste a ponta dos meus dedos,
o máximo de intimidade permitido.

O resto do tempo foi
cheio de olhares, suspiros
e olhos baixos, meios sorrisos
e tremular de pálpebras.

Sucediam-se os dias
como uma cantilena.
Ora nos víamos,
ora não,
ora de manhã,
ora ao final da tarde,
eu posta à janela,
à espera que surgisses
no horizonte.

Ah, como era belo ver-te!
Ah, como era bom esperar-te!
Ah, como tuas liras
me iluminavam
o dia e a noite!

Tuas palavras tinham
a força de cem cavalos,
a cavalgar intrépidos
pelo descampado.
Tuas palavras voavam
como o som de cem sinos.
Tuas palavras me arrebatavam
além dos meus sentidos.

Cantavas, Dirceu,
o nosso amor
aos quatro ventos,
aos quatro cantos,
aos quatro pontos cardeais.

Nem a distância calou-te.

Em tua masmorra,
professavas teu amor,
só, trancado a sete chaves,
escrevias sem luz e sem papel,
e esperavas retornar um dia.

Pensavas que eu não te reconheceria?

Amaria em ti o mesmo homem
que eras quando partiste.
Amaria em ti o homem
em que te transformaste,
pois o amor não muda,
mesmo que se mudem as vestes.

9/02/2013 – 19h40

  

LIRA XV

Uma aragem quente
soprou sobre a terra
ao anunciarem
os prisioneiros.

Desfizeram-se as promessas
e juras de amor que um dia
me fizeste em tuas liras
tão amadas.

Que foi feito de ti?
Que é feito de mim
que só te amou?

Um dia, apeaste do cavalo
que te trouxe para nunca
mais montá-lo.

Que foi feito de nossa vida,
que não se consumou?

Benzeu-me o padre,
tomei o véu,
enclausuraram-me,
de nada adiantou.

Não adiantou fugir,
não adiantou esperar,
não adiantou fingir.

Estavas lá, réu inconfesso,
injustiçado juiz destituído.

Arrancaram-te a toga,
despiram-te das vestes
que portavas com esmero.

Levaram-te daqui,
sequestraram teus bens.
Só não te tiraram
as tuas liras,
nem tua poesia.

Na prisão escreveste,
na prisão lamentaste
tudo que perdeste.

Mais três anos se passaram,
não para nossas bodas,
mas para teu degredo.

E nas liras demonstraste
todo o teu desespero.

O que seria de mim?
O que seria de ti?

Nelas ficaste
para sempre expresso.
Nelas fiquei contigo,
para sempre bela.

Os anos
se passaram,
e as palavras
não mudaram,
nem teu rosto,
nem a cor
dos teus cabelos.

Dormes agora, Dirceu,
para todo o sempre,
com as estrelas do céu,
a esperar por mim.

10/02/2013 – 16h20








LIRA XVI

Sorrirão os novos amantes,
inocentes de seu destino.
Mal sabem o que os aguarda.

A vida, por fim, é um fio
tecido com toda candura,
que um dia se parte.

Saberão os amantes
as suas venturas
como lhes surgem
em sonhos.

Nada sustenta seus sonhos
senão eles mesmos.
Arrancados de sua doçura,
como o caule da flor,
jazerão na terra,
semeando novos frutos.

As mãos se esbarram,
os lábios se tocam,
o amor é apenas
um suspiro.

A vida – essa larga via
por onde todos passam –
mal dá conta desses amores.

Sonhei um dia,
e continuarei sonhando,
pois meu sonho não acabou.

Quem sabe,
um dia,
eu, Marília,
seja feliz
como já fui.

14/02/2013 – 20h50





LIRA XVII

Não fui Heloísa,
que amou Abelardo,
e dele concebeu
um filho.

Não me casei
em Notre-Dame,
nem vivi em
Argenteuil.

Não, não desfrutei
o amor do meu amado,
levado para longe de mim.

Não tive noite de núpcias,
nem lua de mel,
nem jamais fui beijada.

Meu noivo
não foi castrado,
mas, sim,
usurpado de mim.

Fiquei só,
sem meu amado,
preso e acusado
daquilo que não fez.

O que ele urdia
senão seu amor?
O que ele esperava
senão me ter?

Eu não tive a sorte
de viver senão o que vivi.

Amortalhada
em minha túnica branca,
cobri-me de véus de organdi,
coroei-me com flores de laranjeira,
e fiquei imantada,
imortalizada num tempo
que não mais existe.

Tornei-me transparente,inconsútil,
enredada numa teia de mil segredos,
sem nenhum desvendado.

Quem fui, já não importa.
Quem sou, eu nunca fui.
Quem eu seria, jamais serei.

Restou-me um corpo
somente para mim.

19/02/2013 – 1h50






LIRA XVIII

Qualquer que fosse
meu destino,
vivi o que me foi dado.

Fiz tudo que me coube,
busquei refúgio
no amor e no perdão.

A dor da perda indicou
o caminho da Cruz:
um calvário
carregando pedras.

Quem sou eu
para mim mesma,
para minha família
e meus irmãos?

Cuidei de todos,
como os filhos que
nunca tive.

Apaziguei-os,
acalantei-os,
confortei-os
com minhas palavras,
meus gestos doces
da mãe que não pude ser.

Apartada do meu amor,
só pude amar a Deus
e aos meus.

Aconselhei-os,
repreendi-os,
suportei suas lamúrias.

Passou-se o tempo.
Com ele, conformei-me
com meu vazio.

Dei a eles o que me sobrou de amor,
todo o amor que restou em mim,
que Dirceu nunca recebeu.

Tê-lo perdido custou-me a alma.

22/02/2013 – 20h15




LIRA XIX

A manhã não tarda.
A vida se demora
apenas em memória.

O tempo corre
até o infinito.

Adormeço para não ver
a solidão dos meus dias.

Abandono
meus pensamentos
ao sabor dos ventos,
ao correr dos rios.

Minha casa está vazia,
vazios os bolsos
e o sacrário do altar.

Levaram o ouro
nos santos de pau-oco,
esvaziaram
a caixa de dízimos.

Abandonaram a cidade
onde, um dia, foram
de ouro as paredes,
cravejadas de diamantes
e pedras preciosas.

Levaram a riqueza,
deixando-nos sós
no topo da montanha,
às voltas com
nossos fantasmas.

O que diziam teus versos
ficou entre os tijolos
de pau-a-pique,
sob a telha de palha,
tecida sob a amendoeira.

Meus lençóis continuaram
imaculados sobre o leito,
desfeitos só para o sono.

Minha vida foi feita
do silêncio que cercou
meus dias.

Nunca mais ouvi
a cotovia
de teus lábios,
nem o canário
que me comovia.

Nunca mais me viste
entre as venezianas
de tua janela.

Nunca mais corri
apressada
para encontrar-te.

Nunca mais suspirei
como ao esperar-te.

Nunca mais eu fui feliz.

26/02/2013 – 00h15






LIRA XX

Dirceu passou
à História como
outros passaram.

Foram-se todos,
sob a sombra
do verdugo,
a mando da rainha,
para além-mar.

Não restou ninguém
para contar o que houve.

Houve roubo.
Houve segredo.
Houve ameaças.
Houve medo.

Ninguém para me consolar,
ninguém para me dizer:
“Esqueça, tudo passa”,
porque não passou.

Todos se foram
menos eu,
que não fui
à parte alguma.

Fiquei réstia de lua
na noite escura,
luar na palma da mão.

Guardei os lenços
com que enxuguei
meu pranto.

De nada adiantou chorar.

De nada adiantou
lamentar minha tristeza.

O sol continuou
a se levantar
e os dias
se sucediam,
mesmo sem nada
novo.

Os tempos mudaram.
Já não sou mais menina.
Minha beleza esvaneceu.
Desfez-se o sorriso
há muito esquecido.

Foram-se minhas irmãs,
minhas tias, minha mãe.
Foi-se meu pai, meu irmão.
Foi-se a riqueza de outros dias,
o fausto e a pompa.

Do que restou,
nada lembra
os áureos tempos
em que imaginava
uma felicidade
ainda por vir.

E meu rosto apagou-se,
como vela há muito
extinta.

26/02/2013 – 2h50





LIRA XXI

Arriaram os cavalos
na campina para levar
os condenados.

Seguiram os homens
de cabeça raspada,
sem nenhuma ostentação.

Caminharam no convés
do navio e desceram
ao porão imundo.

Uma viagem sem volta
aguardava-os, como féretro
em direção ao cemitério.

Nove homens foram levados
para o outro lado do oceano.
Um ficou nas galés,
outro foi enforcado.

A justiça pesou
com toda a sua fúria,
todo o seu ódio.
Deitaram sobre eles
a ira de tanto desamor.

Nada restou
de suas vidas
senão a memória
dos que ficaram:
o que disseram
e sentiram,
não se sabe.

Dois regressaram
na Independência:
Liberta quae sera tamen.
“Liberdade ainda que tardia.”
Quanto tardou a liberdade!
Ao chegar, já era tão tarde!

Não estavas mais
para vivê-la comigo,
não a vivias mais
ao meu lado.

Liberdade dada não é conquistada.
Como doeu perdê-la contigo!
Como doeu perdê-la por ti!
Como doeu não tê-la contigo!

Não pude ser livre:
tua prisão aprisionou-me.
Não pude amar:
teu amor tornou-me cativa.
Não pude viver:
tua vida carregou a minha.

Fiquei só,
povoada de lembranças,
pois só de ti se lembravam.

Fui abandonada à própria sorte,
sem nada poder guardar
a não ser os teus versos.

Tornei-me
a sombra viva
de tua palavra.

Musa idílica, perpetuada,
sem presente, nem futuro,
somente meu passado cristalizado.

3/03/2013 – 2h05





LIRA XXII


Escreveu Dirceu
suas Cartas Chilenas
ao lado de Glauceste.
Ambos urdiram
suas palavras
contra os desmandos.

Disseram o que fizeram,
cada um o seu coração.
Só podiam, como poetas,
levantar a pena contra o tacão.

Baixou Portugal
seu punho de ferro,
abatendo-os como formigas.
Deixou desbaratinados
todos que um dia sonharam
ver o Brasil entre as nações.
Um sonho que ainda se sonha.

Em 1822,declarou-se
a Independência.
O príncipe português,
filho de D. João,
às margens do Ipiranga,
bradou do alto de sua bravura:
Independência ou morte!
A morte já conhecíamos,
a Independência, não.

Um dia, esse príncipe
veio a Vila Rica,
sozinho em sua montaria,
e topou na estrada com aqueles
que não aceitaram o seu brado,
ainda alinhados a Portugal.
Ao vê-lo sozinho sobre o cavalo,
pensaram: “Que príncipe é esse
que vem desacompanhado,
sem exército para guardá-lo?”
Era D. Pedro I, antes de coroado.
Deram meia-volta e, aos gritos
de vivas, com ele retornaram.

Esse Pedro
quis me conhecer.
Recebi-o sem pompa
e sem circunstância,
ele que ora se fazia
brasileiro.

Mas, ao largo, ao longe,
ainda bradava o meu amor,
levado a bordo
de um navio e deixado
na costa da África.

Ninguém ouviu
meus lamentos,
ninguém atendeu
às minhas súplicas.
Meus pedidos de amor
foram todos negados.

Agora, vem a liberdade tão tardia,
ainda vestida com as cores de Portugal.
De Colônia viramos Império.
E o Império,de governo em governo,
chegou a Pedro II,
o imperador brasileiro.

Acho graça quando me contam
a História do Brasil.
Um país que teve
rei,
rainha,
regentes,
imperadores,
imperatrizes,
príncipes
e princesas,
e ainda bastardos
de todo tipo.

O que diriam
Dirceu e Tiradentes
do Império do Brasil?

Cantaram todos a liberdade,
cantaram todos o novo hino,
cantaram e se insuflaram,
rumando em um novo destino.

Vede, ó brasileiros!
Vede o que sonhais!
Esta é a pátria que sonhamos?
Esta é a pátria por que morremos?

Derramamos o sangue dos heróis,
derramamos o sangue dos brasileiros.
A terra é nossa, com certeza,
das raízes de Portugal.

Não mais temos rainha,
não mais temos rei,
não mais temos príncipes.

Sonhai, país, sonhai,
sonhai com o que queremos sonhar,
e depois vesti a túnica dos exilados,
esses expatriados,
esses que dormem novamente
em solo brasileiro.

Eu nunca fui princesa,
mas sonhei com o amor.
Desci ao Hades, perdida,
pastora do desamor.
Veio Virgílio,
veio Beatriz,
veio Dante
me acalentar.

Nos longínquos pastos
de outrora,
desci as tristes colinas,
onde hoje ainda mora
Marília desde menina.

Não fui à parte alguma.
Não conheci outro homem.
Dirceu, amado que era,
nem pôde se despedir.

Veio rainha, veio príncipe,
todos vieram ao meu país.
Aqui choramos os bravos,
os mesmos de outros tempos.
Saímos em busca de auroras
e estrelas do firmamento.

Ouvi, povo, o que digo:
sou Marília, a musa de Dirceu,
o poeta que de mim foi tirado,
e hoje foi devolvido à terra
que o acolheu.

4/03/2013 – 20h41




LIRA XXIII

Passou, passou o dia,
passou como nuvem,
branca e imensa
que cobre a montanha
e a faz desaparecer.

Passou o trinta de maio,
passou o dia de minhas bodas,
caiu a promessa por terra,
caíram os homens feridos,
caíram as cabeças de tantos
que passaram.

Fiquei reclusa em meu quarto,
fiquei presa no tempo,
fiquei retida entre os versos
não escritos,
palavras entre meus lábios
que eu não disse.

Nada mais foi dito,
nada mais houve.
Passei ao dia seguinte
como o primeiro passo
para dentro da morte,
aquela que seria
o resto de minha vida.

Nada mais vi
senão teus olhos claros,
nada mais ouvi
senão tua voz
em tuas liras

que serão lidas
para sempre.

Fui tua musa,
tua bela Marília,
a Marília de tuas liras
tão amadas.
Que mais serei
senão aquela
que te amou,
que foi a noiva idílica
de teus poemas?

Nunca fui outra,
nunca fui
senão eu mesma:
Marília branca,
Marília pura,
Marília noiva,
Marília silenciosa,
Marília única de teus versos.

Deste-me um anel que se perdeu.
Deste-me tua palavra que se foi.
Deste-me teu olhar que se lançou
no horizonte.

Partiste, e fiquei a te esperar,
mesmo sem nunca mais ver-te.

Para mim, jamais partiste.
Para mim, tu voltaste.
Para mim, nunca me deixaste.

Ouro Preto, 30/05/2013 – 20h50