LIRA I
Lê,
meu amado,
os
versos que te escrevo,
a
procurar-te em outras terras,
longínquas
e amargas.
Levou-te
a foice do destino,
que
separou-nos antes da colheita,
as
núpcias há três anos marcadas
para
terminar com teu degredo.
Não,
não aceito a distância
que
nos impuseram,
eu, abandonada em terra inóspita,
tu,
levado pelo carrasco
que
nos entrevou.
Bordavas
com dedos ágeis
o
tecido do meu vestido,
eu,
a noiva de um poeta
que
não mais retornou.
Foram
os diamantes, o ouro,
as
liras que me escreveste?
Quem
te roubou de mim
foi
o negror de nossa cova.
Quem
lia teus poemas pensava:
“Quem é Marília
bela?”
“Quem é a musa
do poeta?”
Pois
te digo que a musa
foi
morta e enterrada
em
vida ao arrancarem
de
mim o meu futuro.
13/01/2013 –
18h28
LIRA II
Quem
me ouve,
morre
em segredo,
porque
nada diz,
pois
nada foi dito.
Quando falam comigo,
emudeço,
porque
nada
sei
do ocorrido.
Quem
disse, quem soube,
quem
há de dizer o porquê,
por
que a hora funesta
me
coube como enredo?
A
quem serve a beleza
senão
para sua tumba?
Eu
me despi do belo
para
não carregá-lo comigo.
Aonde
eu ia, seguiam-me os olhos:
“Lá vai ela, lá
vai ela!
De nada serviu
tanto ouro,
nem tanta beleza”.
Escondi-me
do mundo,
não
pude mais vê-lo.
Morri
um dia de cada vez
e
só o amor sustentou-me.
Só
o amor poupou-me
de
mais desgraça e medo.
Só
o amor conduziu-me
à
porta da minha vida.
E
disse:
“Não temas, Marília,
pois foste
marcada
como a mais bela
e a mais amada.
“Um dia, Marília,
sua história
será cantada
e sua tristeza
recontada.
Não chores, Marília,
pois isso não é
nada”.
Meu
amado foi levado
pelas
águas a além-mar.
Meu
amado partiu,
mas sem
me deixar.
Deixou
comigo seu coração.
Quisera
mudar o destino,
porém
destino não se muda.
Cabe
a nós apenas vivê-lo
como
nos é dado.
Sofri
toda a amargura,
e
padeci um bocado.
Porém,
quanto mais sofria,
mais
aprendi a amá-lo.
Meu
coração
não
se arrepende
de
um dia
tê-lo
amado.
14/01/2013 –
2h50
LIRA III
Quem
são os pecadores?
Quais
são os pecados
de
quem somente amou?
Quem
são os acusadores?
Quem
são os acusados
de
um crime que não se cometeu?
Quem
estava de tocaia?
Quem
foi o traidor?
Quem
era o embuçado?
Que
palavras foram ditas
para
se derramar a desdita,
e
arrancar de mim o meu amor?
Eu
só quis minha prenda,
só
li meu poema,
só
aguardei junto à porta
sua
carta florida.
Mas,ao
pé do chafariz,
corria
a voz do povo:
“Prendei-o!
Prendei o poeta!”
Dirceu
era tão nobre,
tão
amado noivo,
mas
quis a sorte
que
ele partisse.
Corri
ao pé da rainha,
supliquei
ao Príncipe João,
mas
nem este me ouviu.
Minhas
liras já tinham
corrido
o mundo e chegaram
antes
de mim aos seus ouvidos.
“É ela, é ela”, diziam,
“a mulher mais
bela
e mais amada do
Brasil”.
E
a vista já turva e o olhar
já
perdido me levaram de volta
à
casa que me recolheu.
15/01/2013 –
1h25
LIRA IV
Eu,
Marília,
era
a mais amada,
a
mais cortejada
de
toda a colônia.
Vinham-me
visitar
homens da
Corte,
do
Brasil e de Portugal,
e houve
quem dissesse
que
outra mulher
não
possuía meus dotes.
Fui,
por um tempo,
feliz
e venturosa,
a
quem todo amor foi dado
nas
liras do meu amado.
Três
anos se passaram
sem
que nada mudasse
e
eu só tinha olhos
para
meu casamento
no
final de maio.
Doze
dias antes,
prenderam
Dirceu.
E,
sem mais palavras,
ele foi
levado preso
como
um réu comum.
De
nada adiantou
sua
fidalguia.
De
nada adiantou
todo
o seu amor.
16/01/2013 –
17h10
LIRA V
Ouvi,
amigos, meu desatino.
Dezenove
anos eu contava,
quando
um homem, respeitado
por
todo lugar,
me
pediu em casamento.
Ele
era poeta e me escrevia
umas
liras que todos liam.
A
quem eram escritos os poemas?
“A Marília”, ele dizia,
“por seu amor,
Dirceu”.
Eu
era morena de olhos escuros,
e
ficava todo dia à janela,
à
espera do meu amado.
Lia
seus versos e os guardava,
dobrava
as folhas dentro do livro,
aguardando
um novo poema.
Ah,
amado, quanto esperei por ti
ao
pé da janela acimado chafariz!
Ali
esperava toda tarde,
até
que apontasses no portão.
Minhas
tias me diziam:
“Sai daí, menina!
Não te exponhas tanto.”
Só
eu sei, querido,
o
que te amar
me
custou.
21/01/2013 –
1h48
LIRA VI
Meu
nome escreveste
sobre
o linho mais puro.
Trançaste
meus cabelos negros,
e
pintaste meus olhos com palavras,
e
tornei-me para sempre bela.
Subia
e descia as escadas
da
igreja contando os degraus
que
me conduziriam ao altar
no
dia trinta de maio,
após
três anos de noivado.
Qual!
Turbaram minha vida,
despiram-me
das alvas vestes,
deixaram-me
nua em plena Vila Rica,
caçoada
por todos, a noiva
de
quem haviam usurpado o marido.
Riram
e zombaram de mim,
como
se eu não fosse mais virgem,
como
se o sequestro do meu noivo
me
tornasse impura.
Que
destino me coube
naqueles
idos de 1789!
Por
causa da inveja
de
Silvério dos Reis,
de
seu ciúme desmesurado,
perdi
Dirceu,que foi preso
antes
que pudesse fugir,
alertado
pelo embuçado.
Que
desdita!
Que
maldito dia!
Tivesse
me casado
um
ano mais cedo,
nada
disso teria sido.
Mas,
quem sabe,
Silvério
não tivesse
escrito
sua carta antes
ao
Visconde de Barbacena?
Suposições,
suposições...
E
as liras chegavam
por sobre
o muro,
espalhavam-se
pela cidade,
murmuradas
de boca em boca:
“É ela, Marília
bela,
a noiva do poeta”.
Lia
e relia seus poemas
para
prendê-lo a mim,
para
guardá-lo, enfim,
para
que nunca me deixasse
o
homem que tanto amei.
Partiu,
como um raio,
levado
pelo carrasco.
Partiu
o belo Dirceu,
de
olhos azuis
e
louros cabelos.
Partiu
até desaparecer
no
horizonte.
Partiu
e nunca mais o vi.
Fiquei
só para viver
a
minha história.
21/01/2013 – 23h00
LIRA VII
Vivi
como uma dama,
envolta
em xales,
e
cobrindo o rosto
com
um leque.
Depois
que meu amado partiu,
fiquei
confinada
na
Fazenda das Goiabeiras
junto
a meu pai.
Enchi
meus dias com bordados,
com
leituras e orações.
Recorri
a Nosso Senhor e à Virgem Maria.
Nada
nem ninguém me consolava.
“Santa Maria,
Mãe de Deus,
Rogai por todos
nós, pecadores,
Assim como na
hora de nossa morte.”
Na
hora da morte,
todos correram.
Na
hora das sentenças,
todos fugiram.
Todos
os bens confiscados,
as
casas arrasadas,
a
terra salgada.
Naquela
hora,
morreu
Tiradentes.
Naquela
hora,
morreram
todas
as
esperanças inúteis
de
um lugar
se
tornar mais lindo
do
que já fora.
Naquela
hora,
fecharam
as portas e janelas,
e
ninguém mais olhou para fora.
Fecharam-se
os homens
e
as mulheres dentro de casa,
de
vergonha de um dia
terem
pensado em ser livres.
Impôs-se
a lei do silêncio
para
que ninguém mais falasse,
ninguém
mais ouvisse dizer
que
um dia aqueles homens existiram.
Por
isso foram banidos.
E
Joaquim José da Silva Xavier
ficou
para réu maior,
executado
no lugar de todos,
em
1792.
Nesse
mesmo ano,
partiu
Dirceu, levado pela nau
que
o transportaria
para
os confins da África,
para
Moçambique,
para
a ilha onde morreria,
em
1810.
Me
disseram que lá
ele
se casou.
Eu
respondi:
“Só se estivesse
alienado.”
E
estava.
Que
homem não enlouqueceria
após
ser levado para longe
de
tudo que conhecera?
Seguiu
Dirceu,
despojado
de tudo que possuíra,
sem
seus trajes, arrematados
para
pagar as custas
dos
autos da devassa.
Que
homem não enlouqueceria?
29/01/2013 –
23h00
LIRA VIII
A
história da Conjura,
da
Inconfidência,
não
cessa de passar
em
minha cabeça.
Eu,
que vi tudo de perto,
sentia-me
assustada,
afastada
do meu amor,
levado
às pressas
para
o Rio de Janeiro.
Lá,
na Ilha das Cobras,
Dirceu
apavorou-se,
e
mentiu,
e
desdisse tudo
de
que o acusavam.
Como,
ele dizia,
haveria
de se opor à Coroa,
ele
que era português?
Não,
claro que não.
Ele
apenas cuidava
dos
seus encargos,
nada
que lhe tirasse o sono.
“Apenas a poesia”, dizia ele,
“preenchia meus
dias”.
29/01/2013 –
00h15
LIRA IX
A
poesia de seus dias
em
Vila Rica
a
mim se dirigia.
Escrevia
suas liras
como
se cantasse,
tal
a inspiração
que
eu lhe supria.
Esperava
ele também
pelo
dia do casório,
o
enxoval pronto,
as
arcas fechadas,
para viajar
à Bahia.
Lá
íamos nós,
marido
e mulher,
mudar
de ares.
Ele
era o ouvidor destas terras,
o
juiz de fora, que julgava
as
causas breves,
determinava
o que fosse sensato.
Nenhum
homem se igualava
em
beleza e cultura,
um menino
nascido no Porto,
crescido
no Brasil,
órfão
de mãe desde cedo,
que partiu
para estudar
em
Coimbra.
Vinte
anos depois,
regressou
e
me conheceu.
Eu
era nova, ainda menina.
Quem
poderia imaginar
que
homem tão culto
visse
em mim a sua musa,
e
depois a sua noiva?
Primogênita
de meus pais,
nasci
no dia de São Francisco de Assis,
em
1767, cinquenta anos depois
de surgir
a imagem de Aparecida,
e
batizada
na
Igreja de Nossa Senhora
da
Conceição de Antônio Dias,
com
um mês de idade.
Cresci
à frente de meus irmãos,
com
sabedoria e diligência,
e
logo surgiu quem iria pedir
minha
mão em casamento.
Em
1782, Dirceu chegou
em
seu cavalo rajado,
um
homem que a sorte
soprara todos
os seus dotes.
Ainda
solteiro,
quase
quarenta anos,
Dirceu
assomara ao topo
da
magistratura.
E
qual não foi sua surpresa
conhecer-me
aos quinze anos!
As
liras chegavam por cima do muro,
depois
corriam a cidade,
e
todos queriam ler
sobre o
amor do poeta
por
sua musa:
“Graças, Marília
bela,
graças à minha
estrela”.
Nosso
amor atravessou a história,
nas
liras do meu amado,
com
mais livros que vendeu
Camões!
Teve
um filho natural,
Antonio
Silvério,
que
afastou-o da amante,
e
logo procurou uma moça
para
se casar.
O
Solar dos Ferrões
era
a casa que me abrigava.
Nela,
veio conversar diversas vezes,
quando
os homens aqui se reuniam,
e
me viu, mas não pôde se aproximar.
Funcionário
público
Sem
bens nem fortuna,
e
a diferença de idade
assustou
minhas tias.
Mas
tinha talentos
superiores
aos
bens materiais.
Pastora
sem rebanho
de
seus versos,
meu
nome descende
de
Amarílis de Virgílio,
que
no grego quer dizer Flora,
deusa
das flores,
emprestando-me
o nome Marília,
variante
de Maria,
passando
a ser, então,
Marília
de Dirceu,
“o único entre
os
árcades cuja
obra
é a biografia
e vice-versa”.
Lutou
meu doce pastor
por
sua pastora,
mostrando-me
que seu amor
por
mim era puro,
usando
para me convencer
sua
poesia.
Minha
beleza era ainda maior
para
os teus olhos,
ao
me veres ainda menina,
a
colher frutos no pomar,
sem
fita ou flor.
Nem
sonhava que me espiavas
escondido
por trás da janela
de
tua casa!
Assobiavas
para dizer
que
estavas por perto
durante
o dia.
Que
arrepio me percorria
ao
ouvir o som
desse
canário solitário!
Meu
rosto descrevias como pintura,
“os olhos que
espalham luz divina”.
A
face da cor da neve
–
meus olhos eram sóis!
Os
lábios de rubi
e
os dentes de marfim!
Para
colorir-me,
querias
as tintas do céu!
E
mesmo que me fizesses ciúmes,
sabias
que havia amor.
Dirceu
não me deixava em paz!
Num
domingo,
na
missa das nove da matriz,
veste
camisa fina
com
punhos de renda,
chega
atrasado,
e
faz uma mesura com o chapéu
ao
se sentar na tribuna,
ao
que respondo
com
um movimento de leque.
Logo
descobriram
que
as liras de Dirceu
eram
para mim,
e
trataram de me dissuadir.
Tentaram
me afastar dele,
mas ele
passou
ame
escrever ainda mais,
e
todos liam, embevecidos,
a
história desse amor
que um
dia seria triste.
Ninguém
poderia pensar
em
cortejar a musa
de
tal poeta!
Pediu-me
em casamento,
e
todos correram
para
me consultar.
Mas
como o amor
vence
todos os entraves,
me
perguntaram o que eu queria,
e
eu disse sim!
Marcou-se
o casamento
para
dali a três anos.
Minha
família sabia
que
o tempo tudo
pode
mudar.
Em
junho de 1786,
ficamos
noivos:
eu
já contava
dezenove
anos.
31/01/2013 –
1h14
LIRA X
Fiz
por ti o que ninguém faria.
Sonhei
contigo um sonho de amor.
Só,
à noite, me levantava,
e
vinha olhar a janela
onde
dormias.
Imaginava
teus doces cabelos
repousando
sobre a fronha de linho.
Imaginei-te
homem escorreito,
com
aprumo ao ouvir e ao falar,
tão
digno em trajes de veludo,
com
bordados e rendas nos punhos.
Teu
olhar era doce e os lábios, amenos.
Este
homem, assim vestido,
era
meu amado que sonhava.
11/01/2013 –
3h58
LIRA XI
Em
meio às montanhas,
fiz
meus bordados desde menina.
Sonhei
com dourados, com brincos,
pulseiras
e todos os ornados.
Fui
feliz, porque era rica,
e vivia na
mais bela casa da cidade,
mas
nada disso me adiantou
para
guardar o meu amor.
27/01/2013 –
15h41
LIRA XII
Corre
o dia à volta das figueiras.
Correm
os escravos e as mucamas.
Correm
o feitor e as cozinheiras.
Correm
os homens,
e
toda terra se sacode,
levanta
o pó, que se assenta
nas
estradas, no tropel
dos
cavalos ouriçados.
Gritam
ordens os soldados,
gritam
as gentes desordenadas,
gritam
as almas perdidas
entre
os túmulos,
para
retornar à tumba
ao
anoitecer.
Dança
o turíbulo na missa.
Tamborilam
os dedos no altar.
Movem-se
as mãos rezando terços.
Unem-se
as palmas em oração.
Abrem-se
os livros sobre a mesa,
e
os olhos buscam olhares
girando
em torno do átrio.
“Santa Maria,
Mãe de Deus,
Olhai por nós,
pecadores.”
Olhai
por todos os homens
que
foram levados e não pecaram.
Olhai
por aqueles que ficaram.
Olhai
por nós, que oramos contritos
diante
de Vós, e não pudemos
nos
revoltar.
Salve
Rainha, Mãe de Deus.
Salve
a Rainha de Portugal.
Salve
os homens do Brasil
que
aqui chegaram, ficaram,
partiram
e cruzaram o mar.
Salve
nosso destino
que
não nos deixou ser livres.
Salve
os homens que partiram.
Salve
as mulheres que ficaram.
7/02/2013 –
00h15
LIRA XIII
Um dia, rezaram o terço,
uma novena para a Virgem Maria,
para abençoar todos
que nos deixaram,
os mortos e vivos
que partiram de Vila Rica.
Rezávamos, contritas,
as mulheres
por quem passam
todos os fardos,
de cerzir, cozinhar,
parir e esperar.
Os homens partem
e nunca regressam.
O altar guardava os santos,
imóveis como as montanhas,
os lábios se movendo
em contrição:
“Reza, Marília, reza,
para que teu amor perdure
por toda a vida
e ensine os jovens a amar.”
Amor é feito de nuvem,
névoa esgarçada sobre o monte,
os olivais escondidos
na fumaça de onde brotam
todos os fervores.
A vida passa no sopro,
que faz deslizar a nuvem,
e os dias se alongam
além do horizonte.
Vivemos o tropel
das ansiedades:
a vida não é senão
espera.
Reza e espera.
Reza e espera.
E nada vem ou virá
novamente.
Em meados de maio,
levaram meu amado
e tornei-me a noiva
de um traidor.
Quem houvera de dizer
que aquele belo homem
seria preso com outros dez?
Dez réus foram arrastados
ao Rio de Janeiro,
e levados até as barras do tribunal.
Os autos da Devassa para servir
à Derrama.
O Visconde de Barbacena
armara tudo.
Silvério dos Reis, por ciúmes,
entregou os amigos,
e meu amado era, para ele,
o principal suspeito.
Suspeitavam todos de todos.
Quem se juntara a eles?
O que eles queriam?
Mas eles eram frágeis
e balbuciavam as palavras.
Presos em flagrante de quê?
Estavam em casa e não reunidos.
Estavam em sua lida diária
e não conspirando.
Não houve conspiração.
Houve sonho.
O meu amado estava para partir
comigo para a Bahia.
Onde havia lugar
para uma revolução?
Mentiras, mentiras, mentiras.
Todas elas mentiras.
Mentiram para a rainha.
Não havia conspiração.
9/02/2013 – 00h48
LIRA XIV
Meio
português, meio brasileiro,
de mãe
portuguesa e pai brasileiro,
nasceste
em Miragaia,
na
cidade do Porto,
cresceste
na Bahia,
estudaste
Direito em Coimbra.
Agradaste
a rainha,vindo a ser
Ouvidor
nas Minas Gerais,
um
poeta como nenhum outro
–
que tuas liras comprovam,
escritas,
uma a uma,para mim,
antevendo
a ventura de me ter.
Me
escolheste para tua noiva
e,
depois do pedido celebrado,
beijaste
a ponta dos meus dedos,
o
máximo de intimidade permitido.
O
resto do tempo foi
cheio
de olhares, suspiros
e
olhos baixos, meios sorrisos
e
tremular de pálpebras.
Sucediam-se
os dias
como
uma cantilena.
Ora
nos víamos,
ora
não,
ora
de manhã,
ora
ao final da tarde,
eu
posta à janela,
à
espera que surgisses
no
horizonte.
Ah,
como era belo ver-te!
Ah,
como era bom esperar-te!
Ah,
como tuas liras
me
iluminavam
o
dia e a noite!
Tuas
palavras tinham
a
força de cem cavalos,
a
cavalgar intrépidos
pelo
descampado.
Tuas
palavras voavam
como
o som de cem sinos.
Tuas
palavras me arrebatavam
além
dos meus sentidos.
Cantavas,
Dirceu,
o
nosso amor
aos
quatro ventos,
aos
quatro cantos,
aos
quatro pontos cardeais.
Nem
a distância calou-te.
Em
tua masmorra,
professavas
teu amor,
só,
trancado a sete chaves,
escrevias
sem luz e sem papel,
e
esperavas retornar um dia.
Pensavas
que eu não te reconheceria?
Amaria
em ti o mesmo homem
que
eras quando partiste.
Amaria
em ti o homem
em
que te transformaste,
pois
o amor não muda,
mesmo
que se mudem as vestes.
9/02/2013 –
19h40
LIRA XV
Uma
aragem quente
soprou
sobre a terra
ao
anunciarem
os
prisioneiros.
Desfizeram-se
as promessas
e
juras de amor que um dia
me
fizeste em tuas liras
tão
amadas.
Que
foi feito de ti?
Que
é feito de mim
que
só te amou?
Um
dia, apeaste do cavalo
que
te trouxe para nunca
mais
montá-lo.
Que
foi feito de nossa vida,
que
não se consumou?
Benzeu-me
o padre,
tomei
o véu,
enclausuraram-me,
de
nada adiantou.
Não
adiantou fugir,
não
adiantou esperar,
não
adiantou fingir.
Estavas
lá, réu inconfesso,
injustiçado
juiz destituído.
Arrancaram-te
a toga,
despiram-te
das vestes
que
portavas com esmero.
Levaram-te
daqui,
sequestraram
teus bens.
Só
não te tiraram
as
tuas liras,
nem
tua poesia.
Na
prisão escreveste,
na
prisão lamentaste
tudo
que perdeste.
Mais
três anos se passaram,
não
para nossas bodas,
mas
para teu degredo.
E
nas liras demonstraste
todo
o teu desespero.
O
que seria de mim?
O
que seria de ti?
Nelas
ficaste
para
sempre expresso.
Nelas
fiquei contigo,
para
sempre bela.
Os
anos
se
passaram,
e
as palavras
não
mudaram,
nem
teu rosto,
nem
a cor
dos
teus cabelos.
Dormes
agora, Dirceu,
para
todo o sempre,
com
as estrelas do céu,
a
esperar por mim.
10/02/2013 –
16h20
LIRA XVI
Sorrirão
os novos amantes,
inocentes
de seu destino.
Mal
sabem o que os aguarda.
A
vida, por fim, é um fio
tecido
com toda candura,
que
um dia se parte.
Saberão
os amantes
as
suas venturas
como
lhes surgem
em
sonhos.
Nada
sustenta seus sonhos
senão
eles mesmos.
Arrancados
de sua doçura,
como
o caule da flor,
jazerão
na terra,
semeando
novos frutos.
As
mãos se esbarram,
os
lábios se tocam,
o
amor é apenas
um
suspiro.
A
vida – essa larga via
por
onde todos passam –
mal
dá conta desses amores.
Sonhei
um dia,
e
continuarei sonhando,
pois
meu sonho não acabou.
Quem
sabe,
um
dia,
eu,
Marília,
seja
feliz
como
já fui.
14/02/2013 –
20h50
LIRA XVII
Não
fui Heloísa,
que
amou Abelardo,
e
dele concebeu
um
filho.
Não
me casei
em
Notre-Dame,
nem
vivi em
Argenteuil.
Não,
não desfrutei
o
amor do meu amado,
levado para
longe de mim.
Não
tive noite de núpcias,
nem
lua de mel,
nem
jamais fui beijada.
Meu
noivo
não foi
castrado,
mas,
sim,
usurpado de
mim.
Fiquei
só,
sem
meu amado,
preso e
acusado
daquilo
que não fez.
O
que ele urdia
senão
seu amor?
O
que ele esperava
senão
me ter?
Eu
não tive a sorte
de
viver senão o que vivi.
Amortalhada
em
minha túnica branca,
cobri-me
de véus de organdi,
coroei-me
com flores de laranjeira,
e
fiquei imantada,
imortalizada
num tempo
que
não mais existe.
Tornei-me
transparente,inconsútil,
enredada
numa teia de mil segredos,
sem
nenhum desvendado.
Quem
fui, já não importa.
Quem
sou, eu nunca fui.
Quem
eu seria, jamais serei.
Restou-me
um corpo
somente
para mim.
19/02/2013 –
1h50
LIRA XVIII
Qualquer
que fosse
meu
destino,
vivi
o que me foi dado.
Fiz
tudo que me coube,
busquei
refúgio
no
amor e no perdão.
A
dor da perda indicou
o
caminho da Cruz:
um
calvário
carregando pedras.
Quem
sou eu
para
mim mesma,
para
minha família
e
meus irmãos?
Cuidei
de todos,
como
os filhos que
nunca
tive.
Apaziguei-os,
acalantei-os,
confortei-os
com
minhas palavras,
meus
gestos doces
da
mãe que não pude ser.
Apartada
do meu amor,
só
pude amar a Deus
e
aos meus.
Aconselhei-os,
repreendi-os,
suportei
suas lamúrias.
Passou-se
o tempo.
Com
ele, conformei-me
com
meu vazio.
Dei
a eles o que me sobrou de amor,
todo
o amor que restou em mim,
que
Dirceu nunca recebeu.
Tê-lo
perdido custou-me a alma.
22/02/2013 –
20h15
LIRA XIX
A
manhã não tarda.
A
vida se demora
apenas
em memória.
O
tempo corre
até
o infinito.
Adormeço
para não ver
a
solidão dos meus dias.
Abandono
meus
pensamentos
ao
sabor dos ventos,
ao
correr dos rios.
Minha
casa está vazia,
vazios
os bolsos
e
o sacrário do altar.
Levaram
o ouro
nos
santos de pau-oco,
esvaziaram
a
caixa de dízimos.
Abandonaram
a cidade
onde,
um dia, foram
de
ouro as paredes,
cravejadas
de diamantes
e
pedras preciosas.
Levaram
a riqueza,
deixando-nos
sós
no topo
da montanha,
às
voltas com
nossos
fantasmas.
O
que diziam teus versos
ficou
entre os tijolos
de
pau-a-pique,
sob
a telha de palha,
tecida
sob a amendoeira.
Meus
lençóis continuaram
imaculados
sobre o leito,
desfeitos
só para o sono.
Minha
vida foi feita
do
silêncio que cercou
meus
dias.
Nunca
mais ouvi
a
cotovia
de
teus lábios,
nem
o canário
que
me comovia.
Nunca
mais me viste
entre
as venezianas
de
tua janela.
Nunca
mais corri
apressada
para
encontrar-te.
Nunca
mais suspirei
como
ao esperar-te.
Nunca
mais eu fui feliz.
26/02/2013 –
00h15
LIRA XX
Dirceu
passou
à
História como
outros
passaram.
Foram-se
todos,
sob
a sombra
do
verdugo,
a
mando da rainha,
para
além-mar.
Não
restou ninguém
para
contar o que houve.
Houve
roubo.
Houve
segredo.
Houve
ameaças.
Houve
medo.
Ninguém
para me consolar,
ninguém
para me dizer:
“Esqueça, tudo
passa”,
porque
não passou.
Todos
se foram
menos
eu,
que
não fui
à
parte alguma.
Fiquei
réstia de lua
na
noite escura,
luar
na palma da mão.
Guardei
os lenços
com
que enxuguei
meu
pranto.
De
nada adiantou chorar.
De
nada adiantou
lamentar minha
tristeza.
O
sol continuou
a
se levantar
e
os dias
se
sucediam,
mesmo
sem nada
novo.
Os
tempos mudaram.
Já
não sou mais menina.
Minha
beleza esvaneceu.
Desfez-se
o sorriso
há
muito esquecido.
Foram-se
minhas irmãs,
minhas
tias, minha mãe.
Foi-se
meu pai, meu irmão.
Foi-se
a riqueza de outros dias,
o
fausto e a pompa.
Do
que restou,
nada
lembra
os
áureos tempos
em
que imaginava
uma
felicidade
ainda
por vir.
E
meu rosto apagou-se,
como
vela há muito
extinta.
26/02/2013 –
2h50
LIRA XXI
Arriaram
os cavalos
na
campina para levar
os
condenados.
Seguiram
os homens
de
cabeça raspada,
sem
nenhuma ostentação.
Caminharam
no convés
do
navio e desceram
ao
porão imundo.
Uma
viagem sem volta
aguardava-os,
como féretro
em
direção ao cemitério.
Nove
homens foram levados
para
o outro lado do oceano.
Um
ficou nas galés,
outro
foi enforcado.
A
justiça pesou
com toda
a sua fúria,
todo
o seu ódio.
Deitaram
sobre eles
a
ira de tanto desamor.
Nada
restou
de
suas vidas
senão
a memória
dos
que ficaram:
o
que disseram
e
sentiram,
não
se sabe.
Dois
regressaram
na
Independência:
Liberta quae
sera tamen.
“Liberdade
ainda que tardia.”
Quanto
tardou a liberdade!
Ao
chegar, já era tão tarde!
Não
estavas mais
para
vivê-la comigo,
não
a vivias mais
ao
meu lado.
Liberdade
dada não é conquistada.
Como
doeu perdê-la contigo!
Como
doeu perdê-la por ti!
Como
doeu não tê-la contigo!
Não
pude ser livre:
tua
prisão aprisionou-me.
Não
pude amar:
teu
amor tornou-me cativa.
Não
pude viver:
tua
vida carregou a minha.
Fiquei
só,
povoada
de lembranças,
pois
só de ti se lembravam.
Fui
abandonada à própria sorte,
sem
nada poder guardar
a
não ser os teus versos.
Tornei-me
a
sombra viva
de
tua palavra.
Musa
idílica, perpetuada,
sem
presente, nem futuro,
somente
meu passado cristalizado.
3/03/2013 – 2h05
LIRA XXII
Escreveu
Dirceu
suas Cartas Chilenas
ao
lado de Glauceste.
Ambos
urdiram
suas
palavras
contra
os desmandos.
Disseram
o que fizeram,
cada
um o seu coração.
Só
podiam, como poetas,
levantar
a pena contra o tacão.
Baixou
Portugal
seu
punho de ferro,
abatendo-os
como formigas.
Deixou
desbaratinados
todos
que um dia sonharam
ver
o Brasil entre as nações.
Um
sonho que ainda se sonha.
Em
1822,declarou-se
a
Independência.
O
príncipe português,
filho
de D. João,
às
margens do Ipiranga,
bradou
do alto de sua bravura:
Independência ou
morte!
A
morte já conhecíamos,
a
Independência, não.
Um dia, esse príncipe
veio a Vila Rica,
sozinho em sua montaria,
e topou na estrada com aqueles
que não aceitaram o seu brado,
ainda alinhados a Portugal.
Ao vê-lo sozinho sobre o cavalo,
pensaram: “Que príncipe é esse
que vem desacompanhado,
sem exército para guardá-lo?”
Era D. Pedro I, antes de coroado.
Deram meia-volta e, aos gritos
de vivas, com ele retornaram.
Esse
Pedro
quis me
conhecer.
Recebi-o
sem pompa
e sem
circunstância,
ele
que ora se fazia
brasileiro.
Mas,
ao largo, ao longe,
ainda
bradava o meu amor,
levado
a bordo
de
um navio e deixado
na
costa da África.
Ninguém
ouviu
meus
lamentos,
ninguém
atendeu
às minhas
súplicas.
Meus
pedidos de amor
foram todos
negados.
Agora,
vem a liberdade tão tardia,
ainda
vestida com as cores de Portugal.
De
Colônia viramos Império.
E
o Império,de governo em governo,
chegou
a Pedro II,
o
imperador brasileiro.
Acho
graça quando me contam
a
História do Brasil.
Um
país que teve
rei,
rainha,
regentes,
imperadores,
imperatrizes,
príncipes
e
princesas,
e
ainda bastardos
de
todo tipo.
O
que diriam
Dirceu
e Tiradentes
do
Império do Brasil?
Cantaram
todos a liberdade,
cantaram
todos o novo hino,
cantaram
e se insuflaram,
rumando
em um novo destino.
Vede,
ó brasileiros!
Vede
o que sonhais!
Esta
é a pátria que sonhamos?
Esta
é a pátria por que morremos?
Derramamos
o sangue dos heróis,
derramamos
o sangue dos brasileiros.
A
terra é nossa, com certeza,
das
raízes de Portugal.
Não
mais temos rainha,
não
mais temos rei,
não
mais temos príncipes.
Sonhai,
país, sonhai,
e
depois vesti a túnica dos exilados,
esses
expatriados,
esses
que dormem novamente
em
solo brasileiro.
Eu
nunca fui princesa,
mas
sonhei com o amor.
Desci
ao Hades, perdida,
pastora
do desamor.
Veio
Virgílio,
veio
Beatriz,
veio
Dante
me
acalentar.
Nos
longínquos pastos
de
outrora,
desci
as tristes colinas,
onde
hoje ainda mora
Marília
desde menina.
Não
fui à parte alguma.
Não
conheci outro homem.
Dirceu,
amado que era,
nem pôde
se despedir.
Veio
rainha, veio príncipe,
todos
vieram ao meu país.
Aqui
choramos os bravos,
os
mesmos de outros tempos.
Saímos
em busca de auroras
e
estrelas do firmamento.
Ouvi,
povo, o que digo:
sou
Marília, a musa de Dirceu,
o
poeta que de mim foi tirado,
e hoje
foi devolvido à terra
que
o acolheu.
LIRA
XXIII
Passou, passou o dia,
passou como nuvem,
branca e imensa
que cobre a montanha
e a faz desaparecer.
Passou o trinta de maio,
passou o dia de minhas bodas,
caiu a promessa por terra,
caíram os homens feridos,
caíram as cabeças de tantos
que passaram.
Fiquei reclusa em meu quarto,
fiquei presa no tempo,
fiquei retida entre os versos
não escritos,
palavras entre meus lábios
que eu não disse.
Nada mais foi dito,
nada mais houve.
Passei ao dia seguinte
como o primeiro passo
para dentro da morte,
aquela que seria
o resto de minha vida.
Nada mais vi
senão teus olhos claros,
nada mais ouvi
senão tua voz
em tuas liras
Passou, passou o dia,
passou como nuvem,
branca e imensa
que cobre a montanha
e a faz desaparecer.
Passou o trinta de maio,
passou o dia de minhas bodas,
caiu a promessa por terra,
caíram os homens feridos,
caíram as cabeças de tantos
que passaram.
Fiquei reclusa em meu quarto,
fiquei presa no tempo,
fiquei retida entre os versos
não escritos,
palavras entre meus lábios
que eu não disse.
Nada mais foi dito,
nada mais houve.
Passei ao dia seguinte
como o primeiro passo
para dentro da morte,
aquela que seria
o resto de minha vida.
Nada mais vi
senão teus olhos claros,
nada mais ouvi
senão tua voz
em tuas liras
que serão lidas
para sempre.
Fui tua musa,
tua bela Marília,
a Marília de tuas liras
tão amadas.
Que mais serei
senão aquela
que te amou,
que foi a noiva idílica
de teus poemas?
Nunca fui outra,
nunca fui
senão eu mesma:
Marília branca,
Marília pura,
Marília noiva,
Marília silenciosa,
Marília única de teus versos.
Deste-me um anel que se perdeu.
Deste-me tua palavra que se foi.
Deste-me teu olhar que se lançou
no horizonte.
Partiste, e fiquei a te esperar,
mesmo sem nunca mais ver-te.
Para mim, jamais partiste.
Para mim, tu voltaste.
Para mim, nunca me deixaste.
Ouro Preto, 30/05/2013 – 20h50
para sempre.
Fui tua musa,
tua bela Marília,
a Marília de tuas liras
tão amadas.
Que mais serei
senão aquela
que te amou,
que foi a noiva idílica
de teus poemas?
Nunca fui outra,
nunca fui
senão eu mesma:
Marília branca,
Marília pura,
Marília noiva,
Marília silenciosa,
Marília única de teus versos.
Deste-me um anel que se perdeu.
Deste-me tua palavra que se foi.
Deste-me teu olhar que se lançou
no horizonte.
Partiste, e fiquei a te esperar,
mesmo sem nunca mais ver-te.
Para mim, jamais partiste.
Para mim, tu voltaste.
Para mim, nunca me deixaste.
Ouro Preto, 30/05/2013 – 20h50